12/12/2025 | Press release | Distributed by Public on 12/12/2025 06:09
Foto: Thiago Albuquerque
"Eu me interesso por sonhos." A frase, aparentemente simples, atravessou a roda de conversa realizada no Ipea, no último dia 3, como um convite silencioso para olhar para dentro, e, ao mesmo tempo, para o país. Promovido pela Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia (Diest), o encontro reuniu servidores e convidados para refletir sobre memória, violência e as emoções que atravessam a vida pública brasileira.
A conversa partiu da obra O que é meu, do sociólogo José Henrique Bortoluci, mas rapidamente se expandiu para uma reflexão coletiva sobre trauma, desigualdade, pertencimento e sobre aquilo que, muitas vezes, parece nos escapar: a capacidade de sonhar.
Ao comentar as entrevistas que compõem o livro, José Henrique destacou que, em muitos casos, a violência não aparece como um evento isolado, mas como uma presença insistente ao longo das trajetórias. "A violência aparece como a estrutura da vida social dessas famílias. É uma violência que vem do Estado, vem das ausências do Estado, vem das relações de trabalho, da polícia, da desigualdade extrema. É um fracasso coletivo", afirmou.
Esse diagnóstico dialogou com as reflexões trazidas por Luseni Aquino, diretora da Diest/Ipea, que, na abertura da atividade, convidou à ampliação do olhar para além das políticas públicas em si. Ao apresentar o projeto Política Pública na Vida Cotidiana, ela destacou que a coesão social não se resume à ausência de conflitos - e tampouco é produzida apenas pela ação do Estado -, mas se constrói também por meio de vínculos, narrativas, pertencimentos e formas de convivência que atravessam a experiência cotidiana, inclusive em contextos de forte polarização e desagregação social.
Ao resgatar sua própria trajetória geracional, marcada pela transição da ditadura para a democracia, Luseni lembrou que não há leitura possível do Brasil contemporâneo sem considerar as rupturas, as fraturas e a melancolia política que hoje encurtam horizontes e tornam mais complexa a reconstrução de laços coletivos.
Sonhar: habilidade aprendida, não privilégio
A partir de um trecho do sexto ensaio do livro - que aborda a história de Dayanne Louise -, a discussão ganhou um novo eixo: o sonho como experiência política e social. Na leitura feita por Ana Carolina Dantas, técnica de planejamento e pesquisa da Diest/Ipea, emergiu uma constatação sensível: muitas pessoas sabem sonhar à noite, mas não conseguem - ou não aprenderam - a sonhar acordadas.
"Sonhar no sentido de projetar futuros possíveis e desejados […] parece não ser uma capacidade inata, mas uma espécie de habilidade, uma conquista que opera na tensa relação do sujeito com o mundo que ele habita. É preciso aprender a sonhar", diz o trecho lido no encontro.
Questionado sobre a importância dos sonhos para pensar o Brasil, José Henrique destacou que essas narrativas íntimas, frequentemente desconsideradas pelos estudos tradicionais, são potentes indicadores sociais. "Não há termômetro político e social melhor do que as expectativas de futuro das pessoas. Como elas veem sua própria vida daqui a dez, vinte ou cinquenta anos diz muito sobre a sociedade em que vivem", explicou.
Para ele, a perda dessa capacidade de imaginar o amanhã está ligada ao que chama de melancolia política - um tipo de esgotamento coletivo que encurta horizontes e empobrece possibilidades. "O maior traço do nosso tempo é essa dificuldade de imaginar outras formas de viver no mundo. Sonhar hoje, muitas vezes, virou apenas 'não piorar'. E isso é uma tragédia política", afirmou.
Ele também lembrou que, em diversas culturas originárias, o sonho é parte fundamental da vida coletiva, sendo compartilhado e interpretado em comunidade. "A gente perdeu a roda em que os sonhos eram contados. Estamos tão dopados de imagens e informações que esquecemos de sonhar. Mas o sonho carrega um potencial político enorme, porque ele nos lembra que a criação é possível", completou.
Entre a violência difusa e a reconstrução coletiva
Durante a roda de conversa, Luseni Aquino aprofundou o debate ao destacar que a violência atravessa todos os ensaios do livro, manifestando-se de formas múltiplas e persistentes. Ela mencionou experiências relatadas nas entrevistas que vão desde agressões aparentemente banais até contextos mais extremos, como violência doméstica, abusos na infância, alcoolismo familiar, trabalho infantil em condições análogas à escravidão, expulsões de casa, tentativas de suicídio, perseguições ligadas à orientação sexual e identidade de gênero, além da violência cotidiana imposta a territórios periféricos e à população negra.
Ao lembrar episódios marcantes da história recente, como a chacina da Candelária, os ataques do PCC e a luta das Mães de Maio, Luseni ressaltou que a violência atravessa gerações e constitui um legado trágico compartilhado por grande parte da sociedade brasileira. A partir disso, provocou o autor a refletir sobre como essas experiências são elaboradas - ou não - pelas pessoas entrevistadas e quais seriam as implicações desse acúmulo de dor para a democracia e a coesão social no país.
A conversa tocou também em temas como pertencimento, memória e a dificuldade contemporânea de sustentar projetos coletivos. Ao recuperar referências da psicanálise e da sociologia, José Henrique relacionou o momento atual a um "luto mal elaborado", que enfraquece o senso de futuro comum e reforça projetos cada vez mais individualistas. "Hoje, o sonho não é mais um país melhor ou uma sociedade mais justa, mas enriquecer rapidamente, sair do mundo do trabalho, viver de renda. Isso diz muito sobre o nosso tempo", analisou.
Diante desse cenário, os participantes ressaltaram a importância de ampliar as escutas e de aproximar o campo das políticas públicas da arte, da literatura, da música e do cinema - espaços que, muitas vezes, conseguem captar com maior sensibilidade aquilo que ainda não é plenamente mensurável, mas já pulsa na sociedade.
Ao final, quando perguntado sobre com o que sonha quando está acordado, José Henrique respondeu com honestidade desarmante: "Eu tenho sonhado com mais tempo. E, em algum lugar, ainda sonho que a gente não vai afundar mais."
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