01/09/2025 | Press release | Distributed by Public on 01/09/2025 15:46
Gostaria inicialmente de agradecer ao Ministro Paulo Rangel pelo convite para dirigir-lhes estas palavras, tanto mais honroso pela consciência que tenho da importância do seminário anual das embaixadoras e dos embaixadores de Portugal.
Não posso deixar de lamentar minha ausência involuntária no dia de hoje nesta reunião no histórico palácio da bolsa da "invicta" cidade do Porto. Apresento minhas mais sinceras desculpas por esta ausência provocada por acontecimentos alheios a minha vontade. Sinto-me, no entanto, representado nesta ocasião pelo Embaixador do Brasil, Raimundo Carreiro, que apresentará pessoalmente minhas desculpas hoje a todas as senhoras e os senhores.
Mais uma vez agradeço ao ministro Paulo Rangel por sua generosa compreensão, quando lhe expus por volta das 19:00 horas da última segunda-feira, dia 6 do corrente, a imperiosa necessidade de deixar imediatamente Lisboa e regressar a Brasília.
Seu gesto de grande amizade ao Brasil e a mim permite-me agora, por esta via, falar-lhes um pouco da visão brasileira deste mundo tão conturbado em que vivemos e de que forma podemos unir esforços para alcançar a convivência pacífica e cooperativa entre as nações.
Em muitos aspectos, a visão brasileira de mundo é uma visão que nossos dois países compartilham, à vontade - como estão - na mesma língua, em uma história largamente comum e no ideal transoceânico da democracia - a democracia como "voz do mar interior de um povo" do belo poema "Revolução" de Sophia de Mello Breyner.
Em outros aspectos, a visão brasileira expressa necessariamente as peculiaridades de um país continental do hemisfério sul, do mundo em desenvolvimento e cioso de seu entorno estratégico sul-americano e sul-atlântico.
O certo é que, entre nós, dialogamos sobre o terreno das raízes comuns e com a confiança das amizades especiais.
Não por outra razão Portugal foi um dos convidados de honra ao G20 durante a recém-concluída presidência brasileira - convite que sinalizou nossa convicção de que esse país matricial do cosmopolitismo lusófono deve aportar uma relevante contribuição à reinvenção da ordem mundial.
Digo reinvenção porque seria difícil continuar a falar meramente em uma reforma da ordem mundial.
Uma característica dos dois primeiros governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (iniciados em 1º de janeiro de 2003 e encerrados em 31 de dezembro de 2010) foi, precisamente, esse empenho pela reforma da governança global, sempre dentro dos princípios que a Constituição Federal do Brasil de 1988 traçou para a política externa, como a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos e a defesa da paz.
O Brasil envidou esforços por dar mais peso aos países emergentes nas instituições financeiras internacionais; por incorporar os anseios dos países em desenvolvimento ao arcabouço do comércio internacional; por tornar mais representativa e eficaz a arquitetura de paz e segurança internacional.
As resistências a essa atualização da ordem surgida no pós-guerra foram e seguem sendo profundas.
Por um lado, são muito evidentes as limitações para que essa ordem proporcionasse segurança, prosperidade e sustentabilidade em uma vasta faixa do globo.
Por outro, as tensões internas dessa mesma ordem, nas próprias sociedades que a geraram, patenteiam-se cada vez mais.
Hoje em dia, seria difícil recusar o diagnóstico de uma acentuada deterioração da ordem mundial.
O Secretário-Geral António Guterres falou, na abertura da última Assembleia Geral das Nações Unidas, em um "purgatório de polaridade", no qual a indefinição das regras do jogo é fonte de acentuadas incertezas.
Sem as regras da Carta das Nações Unidas, o mundo volta à turbulência, ou - no mínimo - perde os parâmetros para sair dela.
Daí que, como disse, a reforma das instituições existentes, embora continue a ser urgente, já não é suficiente.
Contra o espectro da desordem - das lutas por hegemonia; das polarizações entre blocos; da anomia pura e simples - será necessário reinventar a ordem.
Senhoras e senhores,
Foi com essa leitura que o governo do Presidente Lula assumiu, em dezembro de 2023, a presidência do G20.
Diante de várias crises que se agravam mutuamente - fome, pobreza e desigualdade; conflitos armados com consequências humanitárias catastróficas; e uma crise climática que já é uma realidade presente e sombria - o Brasil envidou esforços pelo reforço dos mecanismos de cooperação internacional.
No contexto - que já mencionei - de falhanço das instituições multilaterais e de recrudescimento do cenário político, há uma evidente erosão da capacidade de ação concertada na esfera internacional.
Talvez seja por esse exato motivo que o G20 passou a ter, nos últimos anos, papel cada vez mais importante na definição da agenda global.
Consolidado - como é de conhecimento geral - na esteira da crise financeira que abalou a economia mundial em 2008, o G20 vem assistindo a uma ampliação de suas funções de governança global.
Naquele "purgatório de polaridade" citado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, o G20 passou a conformar um espaço privilegiado para a congregação do mundo desenvolvido com o mundo em desenvolvimento, das potências tradicionais com as emergentes, de países e organizações do norte com os do sul, do Fundo Monetário Internacional com o Novo Banco de Desenvolvimento, do G7 com o BRICS.
Sua estrutura informal e flexível de governança se tornou um meio valioso de trazer à mesa e ao diálogo aqueles múltiplos atores, e, ao mesmo tempo, colocar o foro no proscênio da política mundial.
Por uma conjuntura oportuna, o Brasil integrou uma sequência de quatro presidências de turno do G20 exercidas por países em desenvolvimento: Indonésia, Índia, Brasil e, desde o último dia 1º de dezembro, África do Sul.
Isso ensejou uma consolidação ainda maior de temas relacionados ao desenvolvimento econômico e à inclusão social na agenda do Grupo, confirmando a tendência à ampliação do foco original do G20, limitado à discussão dos aspectos financeiros da crise que, em 2008, abalou os alicerces do capitalismo.
A urgência desses temas é óbvia: aquelas crises não afetam igualmente a comunidade internacional; os países em desenvolvimento são os que mais sofrem; e, mesmo dentro dos países, são os mais pobres que sofrem ainda mais.
Na realidade, desde 2020 - e pela primeira vez em décadas -, temos visto um aumento da desigualdade global.
Por isso o Presidente Lula afirmou em seu discurso na Cúpula do G20 de Nova Délhi, em setembro de 2023, que, "se o G20 quiser fazer a diferença, terá de colocar a redução das desigualdades no centro da sua agenda e da agenda internacional".
A desigualdade, bem entendido, em todas as suas formas: desigualdade de renda; desigualdade de acesso a saúde, educação e alimentação; desigualdade de gênero e de raça; e a enorme desigualdade entre os países.
Por isso a presidência brasileira do G20 adotou três prioridades: (1) inclusão social e combate à fome e à pobreza; (2) a reforma das instituições de governança global; e (3) transições energéticas e desenvolvimento sustentável.
Essas prioridades orientaram a ação diplomática brasileira na busca de iniciativas concretas, diretas e orientadas para resultados.
Com esse objetivo em mente, delineamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, lançada durante a Cúpula do Rio com o apoio de mais de 160 membros fundadores - entre os quais Portugal.
Concebida no contexto dos esforços de implementação da Agenda 2030 e como instrumento para acelerar o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 1 (pobreza) e 2 (fome), a Aliança Global está centrada na ideia de coordenar esforços para a implementação nacional, em larga escala, de políticas públicas de reconhecida eficácia, reunidas em uma "cesta de políticas" de referência.
A estrutura da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza é composta por três pilares principais: o Pilar Nacional, voltado para o compromisso dos países na adoção de políticas comprovadas de combate à fome e à pobreza; o Pilar Financeiro, que visa identificar e mobilizar recursos para apoiar os países-membros; e o Pilar de Conhecimento, que facilita a troca de experiências e a assistência técnica.
A Aliança dará voz aos países receptores, fazendo cooperação internacional de um novo jeito e mostrando que a política mundial já não pode dispensar conceitos e programas desenhados no hemisfério sul.
Outro eixo principal para a presidência brasileira do G20 foi, como disse, a reforma da governança global.
O diagnóstico brasileiro foi sintetizado pelo Presidente Lula na abertura da Assembleia Geral deste ano, e peço licença para citá-lo uma vez mais: "não podemos esperar por uma nova tragédia mundial, como foi a Segunda Grande Guerra, para só então construirmos sobre os seus escombros uma nova arquitetura de governança global".
Precisamos dessas reformas agora; não faz sentido aguardarmos por grandes catástrofes - bélicas, climáticas ou de outra natureza - para agir.
Por esse motivo, o Brasil propôs a adoção de um "Chamado à Ação" pela reforma da governança global, documento que foi aberto à adesão de todos os membros das Nações Unidas.
O "Chamado à Ação" foi adotado por consenso no G20, durante a segunda reunião de ministros das Relações Exteriores da presidência brasileira do Grupo, realizada à margem do segmento de alto nível da Assembleia Geral, em Nova York, no último dia 25 de setembro.
Foi a primeira vez na história que o G20 se reuniu dentro da sede das Nações Unidas, na simbólica sala do Conselho Econômico e Social (ECOSOC), em reunião aberta a todos os membros da Organização.
O presidente Lula abriu os trabalhos da reunião, juntamente com o Secretário-Geral, António Guterres, o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa - na condição de próximo presidente de turno do G20 -, e o presidente da Assembleia Geral, Philémon Yang, do Cameroun.
Participaram da reunião, ao todo, 80 delegações, sendo 63 chefiadas pelos respectivos ministros das Relações Exteriores - inclusive o Ministro Paulo Rangel - e, sete, pelos dirigentes máximos das organizações internacionais convidadas.
O Chamado à Ação sobre a Reforma da Governança Global foi o primeiro documento plenamente consensual a ser aprovado em uma reunião de ministros das Relações Exteriores do G20, formato existente desde 2012. Além de todos os membros do G20, outros 40 países expressaram publicamente o seu endosso ao documento, entre os quais Portugal.
O Chamado à Ação está organizado em três capítulos sucintos, tratando das reformas (i) das nações unidas, (ii) da arquitetura financeira internacional e (iii) do sistema multilateral de comércio.
Entre seus principais pontos, podemos citar:
(i) o fortalecimento do papel da Assembleia Geral em temas de paz e segurança internacionais;
(ii) o chamado pela reforma do Conselho de Segurança, visando a adequá-lo à realidade e às demandas do século XXI, com o reconhecimento da necessidade de expansão para aumentar a sua representatividade, sobretudo quanto aos países da África, da Ásia-Pacífico e da América Latina e Caribe;
(iii) o chamado por mais financiamento em prol dos países em desenvolvimento, pelo aumento do capital dos Bancos Multilaterais de Desenvolvimento e por uma redistribuição das quotas dessas instituições que reflita o peso atual dos países emergentes;
(iv) a defesa de um sistema tributário internacional justo, com transparência fiscal e tributação dos "ultra ricos";
(v) o compromisso com um sistema multilateral de comércio baseado em regras, não discriminatório, justo, aberto, inclusivo, equitativo, sustentável e transparente, com a Organização Mundial do Comércio em seu centro;
A maior parte da linguagem acima foi incorporada na declaração dos líderes do G20 do Rio de Janeiro, o que certamente nos ajudará a fazer avançar a agenda de reforma.
O terceiro eixo de nossa presidência foi a mobilização das maiores economias do mundo em prol de ações contra a mudança do clima.
Na Força-Tarefa de Clima, o G20 assumiu um compromisso de liderança rumo a mudanças estruturais nas economias nacionais e no sistema financeiro internacional.
Com a participação de governos, bancos centrais, instituições financeiras internacionais, investidores institucionais e outros atores, a Força-Tarefa foi capaz de aprovar uma agenda comum às 20 maiores economias do mundo com o objetivo de manter a factibilidade do teto de 1,5 grau de elevação da temperatura do planeta, conforme previsto no Acordo de Paris.
Deu também sinais claros para a preservação do legado da COP28 de Dubai, com chamado inédito para que os países antecipem cronogramas de neutralidade climática e apresentem ambiciosas contribuições nacionalmente determinadas (NDCs) na COP-30 de Belém do Pará.
Esperamos que os países desenvolvidos sinalizem que alcançarão mais rápido a neutralidade de emissões e que países em desenvolvimento do G20 passem a assumir metas para toda a economia.
Conectando a governança global com a realidade, nosso esforço no G20 resultou em trabalho histórico para integrar as agendas financeira e climática, avançando modelos de planejamento neoindustrial e de canalização de investimentos para países em desenvolvimento.
No entendimento de que precisamos ir além e de que é imprescindível fortalecer a governança climática global, o Brasil apresentou a proposta de se estudar a criação de um Conselho de Mudança do Clima das Nações Unidas, que poderia funcionar como estrutura permanente de apoio à implementação, aconselhamento e preparação no planejamento global de longo prazo.
Um foro permanente como esse permitiria ligar redes e processos, dentro e fora do Sistema Nações Unidas, conferindo agilidade e efetividade ao esforço global de combate ao problema e evitando a transposição da agenda da mudança do clima para o Conselho de Segurança e sua consequente "securitização".
Sabemos que a produção e o consumo de energia em todo o mundo são a principal causa do aquecimento global. Por isso, há uma necessidade urgente de transformar, globalmente, o setor de energia.
Nesse dossiê, os países do G20, na condição de maiores produtores e consumidores de energia do mundo, têm uma grande responsabilidade.
Cabe ressaltar as credenciais do Brasil na matéria: somos o país com a matriz energética mais limpa dentre as grandes economias mundiais.
Nossa geração de eletricidade é quase 90% renovável.
Há cinco décadas exploramos o potencial de produção de bioenergia, especialmente de biocombustíveis.
Não existe uma única tecnologia que - como uma bala de prata - substitua nossa dependência dos combustíveis fósseis.
O Brasil defende o conceito de neutralidade tecnológica com o propósito de garantir uma transição energética justa e inclusiva, respeitando a diversidade de políticas e de caminhos tecnológicos em apoio ao empenho global de redução das emissões de gases de efeito estufa.
Nesse contexto, o Brasil tem ampliado a sua cooperação internacional com vistas à difusão de automóveis movidos por etanol, combustível que emite 90% menos CO2 do que a gasolina.
É fundamental assegurar que as mudanças que veremos nos próximos anos não aprofundem as desigualdades.
Nesse sentido, foi de grande valia a aprovação, no âmbito do G20, dos "princípios voluntários para transição energética justa e inclusiva", que reconhece a existência desses múltiplos caminhos para a redução de emissões e a neutralidade de carbono no setor energético, bem como o papel da cooperação internacional para esse fim.
Ao mesmo tempo, é urgente interromper a perda da biodiversidade e restaurar ecossistemas, no bojo de um compromisso com o fim do desmatamento e da degradação florestal.
Nessa seara, o Brasil anunciou, à margem da COP28, o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), para valorizar economicamente a floresta em pé.
O Fundo, que será lançado na COP-30, em Belém do Pará, será um mecanismo financeiro inovador que deverá recompensar países em desenvolvimento pela conservação e restauração de suas florestas tropicais.
Seu objetivo é valorizar a floresta em pé através dos serviços dela derivados - e, assim, complementar as abordagens focadas no combate ao desmatamento e no reflorestamento.
Para barrar a degradação ambiental, também temos que dar oportunidades econômicas às pessoas, sobretudo aos mais necessitados.
Com esse objetivo em mente, o Brasil criou, durante a presidência no G20, a Iniciativa de Bioeconomia (GIB), estruturada em três eixos: ciência, tecnologia e inovação; uso sustentável da biodiversidade; e o papel da bioeconomia na promoção do desenvolvimento sustentável.
A Iniciativa aprovou um conjunto acordado de Princípios de Alto Nível sobre Bioeconomia, que constitui o primeiro documento multilateral sobre o tema.
Senhoras e senhores,
Ao longo da nossa presidência no G20, convocamos 134 reuniões, sendo 110 em nível técnico e 24 em nível ministerial.
Esses encontros - como bem sabe Portugal, convidado e presente em todos eles - ocorreram em todas as cinco regiões do Brasil, abrangendo 15 cidades em todo o país.
No total, recebemos cerca de 26.000 delegados nacionais e internacionais, exemplificando o compromisso do G20 com a inclusão e ampla representação.
Essas conquistas foram possíveis graças à colaboração de 35 ministérios e agências federais, além de governos estaduais e municipais, e parcerias inestimáveis com organizações da sociedade civil.
Sob a Presidência brasileira, 12 dos 15 grupos de trabalho da trilha dos sherpas emitiram com sucesso declarações ministeriais.
Este marco, o primeiro desde 2021 devido ao conflito na Ucrânia, foi alcançado por meio de esforços diplomáticos dedicados para fomentar o consenso entre os membros, culminando na adoção da Declaração dos Líderes do G20 do Rio de Janeiro, que incorporou e consolidou, no mais alto nível, a linguagem contida em todas as declarações ministeriais anteriormente emitidas.
O G20 Social, iniciativa pioneira da presidência brasileira do Grupo, teve lugar na região portuária do Rio de Janeiro e reuniu cerca de 50 mil pessoas em três intensos dias de atividades.
Ao longo da presidência brasileira, a sociedade civil organizou dezenas de eventos e participou, pela primeira vez, de reuniões oficiais com os sherpas da trilha política e com os encarregados adjuntos da trilha de finanças.
Essa interação foi fundamental para fortalecer e amplificar os três eixos prioritários da presidência brasileira do G20.
E não foi uma interação de mão única: temos grande orgulho em notar que 74 das recomendações apresentadas pelos Grupos de Engajamento foram incorporadas nas Declarações Ministeriais, sublinhando o papel significativo da sociedade civil na formação da tomada de decisão global.
Contemplando em conjunto a experiência da presidência brasileira do G20, observo que um empreendimento dessa magnitude não teria chegado a bom porto sem a colaboração dos nossos parceiros, entre as quais assinalo, muito especialmente, a de Portugal.
Aproveito essa oportunidade, assim, para agradecer diretamente às funcionárias e funcionários das Necessidades e demais ministérios pela colaboração e pelo decidido apoio às propostas brasileiras no G20.
Senhoras e senhores,
No início de dezembro passado, em Montevidéu, os líderes do Mercosul e a Presidente da Comissão Europeia anunciaram a conclusão do acordo de associação econômica entre os dois blocos, após negociações que duraram mais de duas décadas.
Por meio desse acordo, será criada uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, reunindo aproximadamente 720 milhões de pessoas e economias que, juntas, representam um PIB de mais de 22 trilhões de dólares.
Para que esse desfecho fosse possível, tivemos que superar desconfianças por parte da União Europeia quanto aos compromissos ambientais do Brasil, decorrentes de políticas equivocadas defendidas pelo governo anterior.
Essa circunstância impedia o prosseguimento das tratativas finais do acordo anunciado em 2019, mas nunca efetivamente concluído.
Diante de novas exigências apresentadas pelo lado europeu na questão ambiental, avaliamos que seria indispensável rever outras questões de alta relevância para o nosso bloco sul-americano, como a questão das compras governamentais, do espaço para políticas públicas nas áreas de saúde e de tecnologia e do necessário equilíbrio para a abertura do nosso mercado automotivo, especialmente no que diz respeito a veículos elétricos e híbridos.
Como resultado de quase dois anos de novas negociações, podemos afirmar que logramos um acordo equilibrado e moderno, como pediram alguns membros da União Europeia.
Adotamos compromissos que reforçam a perspectiva colaborativa, que considera as dimensões ambiental, econômica e social do desenvolvimento sustentável.
Ao mesmo tempo, o Mercosul e União Europeia reconhecem que medidas que buscam o desenvolvimento sustentável não podem ser usadas para disfarçar objetivos protecionistas.
Há no acordo, inclusive, mecanismos para evitar o unilateralismo na aplicação de medidas sobre importações.
O acordo também abre oportunidades importantes para a indústria do Mercosul, entre outras para integração com cadeias produtivas europeias.
Os méritos da conclusão do acordo Mercosul-União Europeia vão além do comércio.
O entendimento entre nossos blocos tem grande valor estratégico para as duas regiões.
Ao aproximar América do Sul e Europa, o acordo consolida o que designei no início como valores transatlânticos comuns: a defesa da democracia e o respeito aos direitos humanos.
Dada a importância política e econômica do Mercosul e da União Europeia, transmitimos um sinal inequívoco para o resto do mundo quanto à centralidade desses valores na parceria birregional.
O acordo Mercosul-União Europeia agrupa países que buscam assegurar justiça, estabilidade e pluralidade em um momento em que rivalidades geopolíticas e tensões comerciais turvam o horizonte de futuro e buscam fraturar o mundo em amigos e inimigos.
O acordo servirá, desse modo, de importante contraponto a essas incertezas que nos deparam a todos, demonstrando que é possível construir e aprofundar parcerias amplas, diversificadas e mutuamente benéficas entre norte e sul.
Não posso deixar, nesse ponto, de agradecer o apoio de Portugal no decurso das longas tratativas para que se alcançasse esse acordo, fazendo especial menção ao embaixador Francisco Ribeiro Telles, com quem discuti frequentemente esse assunto - inclusive em alguns encontros casuais durante caminhadas matinais no Lago Sul, onde residíamos, em Brasília - quando fui ministro de estado da presidente Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016, e, ele, Embaixador de Portugal no Brasil.
Senhoras e senhores,
O Presidente Lula é, há muito, uma voz pela construção de um mundo multipolar estável, próspero e justo.
Um mundo multipolar deve, necessariamente, ser um mundo plural, capaz de respeitar as diferenças e fomentar a convivência pacífica.
Mas, sendo plural, deve - também necessariamente - resguardar as democracias e os seus valores.
Não poderia haver dia mais apropriado para essa observação, pois hoje completam-se dois anos dos ataques de Oito de Janeiro de 2023 à sede dos três poderes e à própria democracia brasileira.
O Brasil seguirá determinado a proteger as suas instituições democráticas.
Trabalhará, simultaneamente, para que o mundo multipolar para o qual estamos caminhando - mas a que ainda não chegamos, como notou António Guterres - tenha uma conformação estável.
Acreditamos que também será do interesse da união europeia - ela mesma um grande polo mundial - trabalhar nesse rumo.
A "comunidade internacional" já não se reduz a grupos e formatos tradicionais.
Como mostra o G20 - com todas as suas dificuldades -, será necessário forjar consensos em bases mais amplas, essenciais para conferir legitimidade e durabilidade ao ordenamento que buscamos.
Nesse contexto, mais do que inspirar receio, como acontece em algumas regiões do mundo, a ascensão do BRICS é um sinal de que o Sul político se tornou incontornável na definição dos destinos do mundo.
Por sua vez, o IBAS - agrupamento de Índia, Brasil e África do Sul, três grandes democracias em desenvolvimento, multiculturais e multiétnicas - é um sinal da importância da democracia no Sul político e na reconfiguração global.
É imperativo o diálogo e o entendimento entre o mundo desenvolvido e agrupamentos como o BRICS e o IBAS, em prol da estabilidade de uma ordem reinventada.
Parte dessa estabilidade deverá advir da aceitação da maior autonomia - inclusive estratégica - de cada polo mundial para definir sua trajetória internacional.
O Brasil, com sua política exterior tradicionalmente marcada pelo não-alinhamento, vê favoravelmente essa tendência - a se materializar, inclusive, pela própria concretização do acordo Mercosul-União Europeia.
Atento ao seu entorno estratégico - continental e marítimo -, o Brasil não pode deixar de procurar fortalecer os elementos de um ordenamento mundial que mantenha a região sul-americana e sul-atlântica ao abrigo de interferências extrarregionais.
Destaco, aqui, a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que, em 1986, estabeleceu a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, texto que exorta especialmente os Estados militarmente importantes a não introduzirem no Atlântico Sul "rivalidades e conflitos que lhe sejam alheios".
É esse patrimônio de paz e cooperação em seu entorno geográfico que o Brasil tem a responsabilidade de manter e aprofundar, contribuindo para a formação de uma ordem que o resguarde.
Gostaria de concluir recordando o grande chanceler brasileiro Francisco Clementino de San Tiago Dantas, patrono da chamada Política Externa Independente.
Em uma conferência de 1962 na Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, observou sobre a guerra fria que, em vez de alianças confrontacionais ou do engessamento em grandes blocos, os países socialistas e as democracias deviam manter uma "convivência competitiva".
A competição regrada entre os dois lados favoreceria sempre as democracias, pois - indicava San Tiago Dantas - as instituições democráticas acabam por sobressair pelos seus maiores méritos.
Com todas as diferenças que nos separam daquele mundo de meados do século passado, creio que o preceito de San Tiago Dantas segue válido na transição de polaridades em que vivemos: convivendo ordenadamente com as diferenças e com uma ampla gama de formas políticas, as democracias podem e devem manter a força de suas convicções.
É como o Brasil - país universalista, aberto ao diálogo e amante da paz - vê o complexo processo de formação de um mundo mais equilibrado e seguro, assim como sustentável, próspero e democrático.
Muito obrigado.